Declaração do Fórum Mundial de Povos Pescadores (WFFP) – 18 de abril de 2020
Em apenas três meses, a COVID19 mudou a vida de todos os povos e desencadeou respostas sem precedentes de vários governos em todo o mundo. Até o presente momento, as comunidades de pescadores artesanais não têm tido voz ativa nos debates sobre como responder à COVID19. Em realidade, a maior parte das soluções propostas pelos governos expõem a incapacidade de apoiar as comunidades de pescadores artesanais. Nós, do WFFP, acreditamos que os governos e os movimentos de pescadores artesanais devem encontrar, juntos, mecanismos de resposta adequados às comunidades pesqueiras.
O efeito mortal do altamente contagioso Coronavírus e os sistemas de saúde assustadoramente precários exigem um apoio substancial para potencializar as infraestruturas de saúde e as medidas necessárias para deter o avanço da doença. Contudo, também exigem mecanismos de apoio que protejam os direitos humanos de todos os povos, garantindo, em particular, que não haja fome em tempos em que a pesca artesanal e os sistemas alimentares locais estão sendo impedidos de funcionar.
É com muita decepção que vemos que as respostas dos governos não levam em consideração as necessidades e a importância da pesca artesanal. O fechamento de mercados locais levou à suspensão quase completa das atividades de pesca em pequena escala em Honduras, Equador, Turquia, África do Sul, Senegal, Sri Lanka e Gâmbia. Em outros países, como a Tailândia, Malásia, Espanha, França e Maldivas, os pescadores continuam a trabalhar, mas sua renda tem sido fortemente afetada pela ausência de consumidores, pela competência das frotas industriais e/ou pela queda dos preços.
Os meios utilizados para aplicar o distanciamento social e toques de recolher em todo o mundo são exemplos de que vivemos em uma era de autoritarismo crescente. As comunidades mais pobres têm dificuldade de abastecer-se em alimentos. A “salvaguarda” militar, que proíbe o comércio em mercados de peixes no Sri Lanka, a violência policial na África do Sul e o bloqueio da circulação de alimentos e outros itens, realizado pelo exército na região do lago Turkana, no nordeste do Quênia, são alguns dos exemplos da brutalidade das medidas autoritárias adotadas por muitos governos em todo o mundo. De forma irônica, essas medidas matarão muitas mais pessoas – pelas balas ou pela fome – do que o próprio coronavírus. Denunciamos essa resposta militarizada a uma crise sanitária.
Em todas partes, as mulheres são afetadas duplamente, enquanto cuidadoras, já que as crianças não vão à escola e os mais velhos necessitam cuidados adicionais. Os membros do WFFP de todo o mundo são testemunha das consequências imediatas dessa crise para as mulheres. Na Malásia, dezenas de milhares de mulheres perderam seus meios de subsistência, devido à interrupção total das atividades de processamento e de comércio. Na Tailândia, onde os pescadores começaram a vender seus produtos diretamente aos consumidores por intermédio de sistemas digitais como resposta às medidas de distanciamento social, as mulheres foram excluídas das atividades de beneficiamento e venda. Na África do Sul, as mulheres que desempenham atividades a meio-período em outros setores (como no setor do turismo, por exemplo) têm sido despedidas sem nenhuma compensação. No Sri Lanka, as mulheres têm sofrido com a crescente violência doméstica, insegurança alimentar e falta de acesso a medicamentos e serviços de saúde. Os governos devem fazer mais para pôr fim à violência e à discriminação contra as mulheres, especialmente no atual contexto.
O fechamento de mercados locais e a cessação das atividades de pesca artesanal afetam a todas as pessoas envolvidas na cadeia de valor da pesca artesanal e a milhões de pessoas que, em todo o mundo, dependem do produto das pescas como fonte de proteína saudável e acessível. Mais ainda, o caráter geralmente informal da atividade de pesca em pequena escala torna as comunidades pesqueiras ainda mais vulneráveis, posto que os mecanismos de apoio são destinados à economia formal e aos sistemas alimentares industriais. Em sua essência, essas respostas aprofundam as desigualdades e as disparidades das relações de poder entre os sistemas alimentares industriais e as corporações transnacionais, por um lado, e por outro, os pequenos produtores de alimentos.
Nesses tempos de crise profunda, nossas respostas devem buscar solucionar os problemas subjacentes de nosso sistema alimentar, em que as cadeias de supermercados e a produção industrial de alimentos são vistas como as tábuas da salvação. Ao invés disso, devemos construir soluções locais. A receita é simples. Por um lado, os governos devem deixar de realizar favores políticos e econômicos e injetar dinheiro nos sistemas alimentares industriais de larga escala. Por outro lado, os governos devem apoiar diretamente os pescadores artesanais (e demais pequenos produtores de alimentos) e seus sistemas alimentares locais, construindo, assim, sobre as bases dos princípios de soberania alimentar. Recordamos aos governos quais são os valores e princípios da soberania alimentar relativos à pesca artesanal e instamos os governos a:
- valorizar os produtores de alimentos e apoiar os sistemas alimentares locais que fornecem alimentos nutritivos e saudáveis para grandes contingentes populacionais a preços acessíveis.
- fornecer apoio para melhorar a qualidade dos produtos e das condições de trabalho, incluindo a melhoria das condições sanitárias e de saúde do setor da pesca artesanal.
- trabalhar com as organizações de pescadores para reforçar o controle local e democrático dos recursos em terras e águas e buscar medidas apropriadas para impedir o avanço do coronavírus.
Nunca é demais salientar a importância do acesso a alimentos nutritivos e saudáveis. O isolamento das comunidades do mundo exterior entrava o acesso aos alimentos e cria medo e pânico ante a perspectiva da fome. Até mesmo em países e regiões onde há abundância de alimentos à disposição, o aumento do tempo de transporte aos supermercados e o aumento dos preços tornam impossível, para muitos, adquirir itens básicos de alimentação. Exigimos de nossos governos garantias de acesso aos alimentos para todos, especialmente para as comunidades isoladas e marginalizadas e para aqueles que são afetados desproporcionalmente pela atual crise, tais como os pescadores artesanais e suas famílias.
Recordamos aos nossos governos a existência das Diretrizes Internacionais para Garantir a Pesca de Pequena Escala Sustentável, referendadas pelo Comitê das Pescas da FAO em 2014 – que enfatiza que é de responsabilidade dos Estados a promoção de políticas baseadas nos direitos humanos e a garantia da participação das organizações de pescadores no processo decisório. Nesses tempos de grave crise sanitária, social, ambiental e econômica, reiteramos que os pequenos produtores de alimentos não são apenas essenciais para a produção de alimentos, mas devem, também, estar no centro das políticas e processos decisórios.
Continuamos comprometidos a trabalhar com os governos para encontrar soluções duradouras, justas e sustentáveis para controlar essa crise multidimensional. Se assim agirmos, estaremos mais próximos de garantir a soberania alimentar em um futuro próximo.
Acabemos com a COVID-19 e todas as formas de injustiça!
Nadine Nembard (Secretária Geral), Christiana Louwa e Moisés Osorto (Copresidentes)
em nome do Fórum Mundial de Povos Pescadores (WFFP)
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